quinta-feira, 19 de julho de 2007

Minutos de memória

Tentei me lembrar o que ia dizer, mas as idéias se perderam nesse labirinto do tempo dito memória. Deve ser o mesmo lugar para aonde vão aquelas palavras que estavam na ponta da língua. Aí peguei novamente aquele livro que não consigo mais largar: Escrever. Como se trata de um livro de parágrafos aparentemente soltos sobre vários temas, abri em qualquer página como se deixasse a sorte me levar, como se fosse um daqueles minutos de sabedoria em que você pensa numa situação e separa aquele mar de folhas de papel correndo rapidamente os olhos pelas linhas do texto na esperança de encontrar uma exata palavra de conforto ou explicação. Deve ser uma espécie de necessidade do sobrenatural.

Mas é verdade, aconteceu: abri justamente na página 112, verbete 172 A memória. Lá diz que "Ela é quase sempre uma recuperação de imagens imóveis. Porque relembrar o movimento exige um esforço de deliberação. E a memória simplesmente aparece. Mas são imagens que se marcam ou douram de um envolvimento que as transfigura. Um halo, uma ténue neblina. E tudo isso inserido numa certa estação do ano, num certo momento do dia ou da noite. São imagens que se repetem na evocação de certos lugares como se os condenassem e nelas se resumisse ou aglomerasse a vida toda aí vivida. Uma hora de neve, de um gelo na face ao caminhar por uma rua com beirais das casas pingando a água do degelo. Uma certa hora de Outono em esguios castanheiros a desfolharem-se. Uma certa noite de Verão com uma grande lua a nascer. Um passeio pelo campo com flores silvestres que talvez ninguém mais veja. Memória de uma vida tão cheia do seu nada nesse breve instante que a resume toda. O melhor de si. Esse nada de si".

Creio que o maior desafio é conseguir não pensar em nada, esvaziar a mente, sem um risco de passado, presente ou hipótese de futuro (deve ser "esse nada de si"). A verdade é que ainda não consegui lembrar o que ia dizer. Mas o esquecimento às vezes vem a calhar. Valei-me Vergílio Ferreira.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

amaré...

Vejam essa maravilha de cenário
É um episódio relicário
Que o artista num sonho genial
Escolheu para este carnaval
E o asfalto como passarela
Será a tela do Brasil em forma de aquarela
Passeando pelas cercanias do Amazonas
Conheci vastos seringais
No Pará, a ilha de Marajó
E a velha cabana do Timbó
Caminhando ainda um pouco mais
Deparei com lindos coqueirais
Estava no Ceará, terra de Irapuã
De Iracema e Tupã
E fiquei radiante de alegria
Quando cheguei na Bahia
Bahia de Castro Alves, do acarajé
Das noites de magia, do candomblé
Depois de atravessar as matas do Ipú
Assisti em Pernambuco
A festa do frevo e do maracatu
Brasília tem o seu destaque
Na arte, na beleza, arquitetura
Feitiço de garoa pela serra
São Paulo engrandece a nossa terra
Do leste, por todo o Centro-Oeste
Tudo é belo e tem lindo matiz
No Rio dos sambas e batucadas
Dos malandros e mulatas
De requebros febris Brasil, essas nossas verdes matas
Cachoeiras e cascatas
De colorido sutil
E este lindo céu azul de anil
Emoldura em aquarela o meu Brasil

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Papel para os anais

A piada é boa, estava num livro publicado na década de 40 pelo Secretariado da Propaganda Nacional (Agência Geral das Colónias) : O império colonial português. Em altíssimo nível de cara de pau, o capítulo Política de cooperação racial diz:

"Desde início, a nossa política de expansão colonial foi baseada num grande princípio de respeito humano pelos povos colonizados. A sua definição mais exacta é talvez a de cooperação racial se acrescentarmos que uma finalidade, mais alta ainda, a caracteriza especialmente, a finalidade de uma crescente nacionalização de tôdas as populações das nossas colónias.

Essa política tem uma base moral fortíssima e sempre mantida, a da Religião Católica, verdadeiramente sentida e vivida com a mais humana compreensão por todos os portugueses.

Separar a nossa expansão colonizadora da ideia missionária, Católica, que sempre a acompanhou seria negar a realidade. Seria também tornar incompreensível quanto fizemos e fazemos mais que nenhum outro povo colonizador para a elevação das populações dos territórios coloniais a que, por definição jurídica, chamamos de indígenas".

Esse registro de fato é papel para os anais!

domingo, 15 de julho de 2007

Águas de bacalhau

Depois da expressão portuguesa "águas de bacalhau", usada quando uma coisa não dá em nada, falha, acabo de experimentar as águas de Pé na cova (Penacova). Perfeita para molhar o céu da boca e digna do provérbio "desta água não beberei", para provar do produto não precisa estar com os dias contados, basta ter 0,50 centavos no bolso. Além do nome, quase divino, o rótulo ainda traz o slogan "eterna pureza" da Serra do Buçaco.

Diz na Wikipedia: a Serra do Buçaco é uma elevação de Portugal Continental e abrange o concelho de Penacova. A mata que existe ainda hoje na Serra do Buçaco foi mandada plantar pela Ordem dos Carmelitas Descalços no primeiro quarto do século XVII.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Poetas no front em Moçambique

"Durante bastante tempo (pelo menos desde a II Guerra) Moçambique foi considerada uma colônia de poetas. Na década de 70, com a guerra pela libertação nacional, a Frelimo - Frente de Libertação de Moçambique fez uma recolha de textos poéticos produzidos para consumo interno da guerrilha (elaborados por militares), conquanto passíveis de serem divulgados, com impacto político imediato nos meios internacionais. Poesia de Combate ou de Guerrilha eram os nomes e incluía texto de Marcelino dos Santos, Sérgio Vieira, entre outros. Com poemas de nítida intenção militante, com sentido estrito ou de luta anti-colonial, atinge uma expressão didática e informativa".

O trecho do poema Para uma moral (Marcelino dos Santos) ilustra o tom da produção daquele tempo e o contorno da expressão ideológica nas entrelinhas da ferramenta cultural.

Cada um de nós
tem um desejo
forte de sonho e de vontade
ser doutor aviador ou mecânico
carpinteiro engenheiro
e mesmo político
e servir
amanhã
o povo
com o melhor do seu gosto e saber

E hoje
camaradas
como servir hoje o povo.

Fonte: Larajeira, Pires (1995). Literaturas africanas de expressão portuguesa. Universidade Aberta, Lisboa.

Museu nas amarras do colonialismo

Se o mar português espelhou o céu nos versos de Pessoa, o Museu do Mar da Língua Portuguesa – previsto para ser inaugurado em meados de 2008, em Lisboa – é mais uma oportunidade para refletir sobre a diáspora do idioma no mundo.

Em entrevista (por Zi) a historiadora portuguesa Judite de Freitas, professora de Relações Internacionais, fala da iniciativa no debate da lusofonia.

O Museu do Mar da Língua Portuguesa terá simulação das viagens dos Descobrimentos. Com essa amarra histórica Portugal estaria dizendo a língua portuguesa ainda é nossa?

Judite: O português é uma língua de cultura e como tal exerce um papel aglutinador entre todos os povos que a falam em diferentes latitudes do globo no respeito pelos costumes, usos e leis nacionais de todos os falantes. Não me parece que o sentido político no atual mundo globalizado, do projeto de criação de um Museu do Mar tenha em vista uma perspectiva da língua enquanto patrimônio exclusivo de Portugal. É mais uma língua de muitas culturas e alguns Estados.

Esse apego aos Descobrimentos é um orgulho dos processos de aculturação que Portugal promoveu ao longo da história? E, do ponto de vista da lusofonia, não demonstra um sintoma neocolonialista?

Judite : Esta questão do neocolonialismo colocar-se-ia qualquer que fosse a opção política do governo. A promoção e difusão da língua portuguesa têm, do meu ponto de vista, que passar por uma política coordenada e convergente dos vários agentes culturais nacionais. Medidas avulsas, regra geral, pouco representam e não exercem o devido impacto. O marketing da língua e cultura nacionais deve constituir uma das prioridades culturais do governo. A Inglaterra e a França, com outros meios e recursos, fazem-no há muito mais tempo. A Espanha, muito embora mais tardiamente, leva a cabo através do Instituto Cervantes uma política que tem dado significativos frutos.

domingo, 8 de julho de 2007

Craveirinha: Poema do futuro cidadão

Poema do futuro cidadão
(José Craveirinha - Chigubo - 1964)

Vim de qualquer parte
de uma Nação que ainda não existe.
Vim e estou aqui!

Não nasci apenas eu
nem tu nem nenhum outro...
mas Irmão.

Mas
tenho amor para dar às mãos cheias.
Amor do que sou
e nada mais.

E
tenho no coração
gritos que não são meus somente
porque venho de um País que ainda não existe.

Ah! Tenho meu Amor a todos para dar
do que sou.
Eu!
Homem qualquer
Cidadão de uma Nação que ainda não existe.



FONTE: Cavacas, Fernanda (1994). O texto literário e o ensino da língua em Moçambique. Colecção Sete, Lisboa - Maputo.
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Autobiografia (Wikipedia)

Craveirinha é considerado um dos maiores poetas de Moçambique. Em 1991, tornou-se o primeiro autor africano galardoado com o Prémio Camões.

“Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Isto por parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai, fiquei José. Aonde? Na Av. Do Zihlahla, entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres.

“Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato.

“A seguir, fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: seu irmão.

“E a partir de cada nascimento, eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terrra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.

A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe preta.

Nasci ainda outra vez no jornal "O Brado Africano”. No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noémia de Sousa.

Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.

Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por parte de minha mãe, só resignação.

Uma luta incessante comigo próprio. Autodidata.

Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.

Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse País, muitas vezes, altas horas a noite.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Portugal na CEE

Esta semana, o primeiro-ministro português, José Sócrates, anunciou na presidência da UE para os próximos seis meses maior aproximação com Brasil e África, provavelmente lusófona. Para ilustrar o episódio a música escolhida como pano de fundo é "Quero ver Portugal na CEE", feita em 1981 pelo portuense Grupo Novo Rock (GNR), também sigla da Guarda Nacional Republicana.

O apelo do refrão "Quero ver Portugal na CEE" só foi atendido cinco anos mais tarde e será que sonharia o autor ver o país em sua terceira presidência no bloco. Como se diz por cá, Portugal está cheio de pica! (Traduzindo: com o pique total). A flor azul foi o símbolo da adesão à comunidade, o que representaria a modernidade, sendo também cor do mar, elemento crucial da identidade histórica portuguesa.


PORTUGAL NA CEE [GNR]

Na rádio, na Tv nos jornais, quem não lê
Portugal e a CEE
Quanto mais se fala, menos se vê
Eu já estou farto e quero ver

Quero ver Portugal na CEE
Quero ver Portugal na CEE

À boleia, pela rua
lá vou eu ao mercado comum
ao lá chegar, vi o bosstinha cunha
foi o que me valeu
perguntei-lhe “Qual é a tua, ó meu?”

Quero ver Portugal na CEE
Quero ver Portugal na CEE

E agora que já lá estamos
Vamos ter tudo aquilo que desejamos
Um PA p’rás vozes e uma Fender
Oh boy, é tão bom estar na CEE

Quero ver Portugal na CEE
Quero ver Portugal na CEE


(Vítor Rua, 1981)